Reflexões Teóricas


SISTEMAS DE EXECUÇÃO PENAL
Clarissa de Baumont - resumo a partir do livro:
CARVALHO, Salo de. Pena e Garantias. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2008.


1. Breve Histórico

De acordo com a doutrina, a natureza jurídica da execução penal é indicada por três sistemas: os administrativos, os jurisdicionais e os sistemas mistos.
Segundo Albuquerque Prado, a dificuldade para a solução das questões executivas reside necessariamente na distinção entre os atos de administração e os atos de jurisdição. Para o autor, a função administrativa distingue-se da jurisdicional porque na primeira o administrador age espontaneamente, adota medidas preventivas para evitar a violação da lei e cria, com seus atos, situações jurídicas novas. O juiz, de modo diverso, é sempre provocado, atua após a violação da lei e nada cria, apenas assegura em seu julgamento situação (pré) existente”. [1]

Albuquerque Prado, de acordo com Salo de Carvalho (2008), argumenta ser a execução penal uma atividade administrativa, pois sua verdadeira natureza seria ato de administração, principalmente porque na execução o Estado age como um poder soberano para a realização de seus interesses. Nesse sentido, se a execução penal fosse ato jurisdicional, o órgão executivo estaria vinculado aos interesses de outros. Funda-se, esse pensamento, nas noções tradicionais que distinguem radicalmente os poderes estatais.
Cessaria, portanto, com a condenação, a atividade jurisdicional. A partir de então, a administração penitenciária definiria os rumos da execução penal. Esse entendimento, todavia, acabava por se chocar com a necessidade de intervenção judicial nos chamados incidentes da execução.
Dogmaticamente, derivou disso uma concepção híbrida, de que a natureza da execução penal seria tanto administrativa quanto jurisdicional. A divisão de esferas diria respeito à necessidade de a administração regular disciplinarmente a massa carcerária, enquanto caberia ao judiciário a concessão ou restrição de “benesses legais”.
Interessante notar, a esse respeito, que a concepção administrativista muitas vezes dominante implica em qualificar os direitos decorrentes dos incidentes como meros benefícios concedidos pelo Estado ao condenado, e não como direitos públicos subjetivos dos apenados frente à administração, que podem ser postulados perante o Poder Judiciário (direito de petição).

2. O sistema de execução instituído pela LEP 

De acordo com a tradição, o direito penitenciário é autônomo, destinado a organizar e determinar regras disciplinares capazes de ordenar a vida do apenado durante o cumprimento da pena, sendo exercido pelos órgãos do Serviço Penitenciário.
“No entanto, a ampla discricionariedade no trato das questões internas à ordem penitenciária gerou um subproduto trágico característico das instituições totais, qual seja, a disfunção da atividade pelo arbítrio e pela lesão constante dos direitos dos presos, estabelecendo o que se conhece como crise da execução da pena”. [2]


Destaca-se que o princípio da legalidade dos atos administrativos é diverso do princípio da legalidade penal, pois a ação executiva é regida pelos princípios da disciplina e da ordem, e sob esses argumentos, historicamente, foram justificadas, por parte da administração penitenciária, restrições e violações de direitos do condenado, os quais não foram limitados pela sentença condenatória.
Para diminuir tais violações, foi instituída a Lei 7.210/84, Lei de Execuções Penais (LEP), normatizando a jurisdicionalização da execução da pena.
“O processo de jurisdicionalização, disposto pela LEP nos arts. 1º. (que fixa o conteúdo jurídico da execução penal), 2º. (que anuncia a jurisdição e o processo), 66 (que detalha a competência do juiz de execução penal) e 194 (que determina o procedimento judicial), objetiva tornar eficaz o princípio da legalidade, assegurando aos reclusos seus direitos fundamentais”. [3]

Embora introduzida, não se pode afirmar que a mudança tenha ocorrido efetivamente, no que diz respeito à natureza jurídica da execução penal. Pela LEP, o Direito de execução penal é autônomo, não submisso ao direito e ao processo penal. Também não corresponde a mero regulamento penitenciário ou estatuto do presidiário. “É nesta complexidade e autonomia que estão tensionadas jurisdição e administração”. [4]

Mesmo assim, o novo entendimento produziu algumas consequências de ordem garantista no sistema. Para alguns autores, o apenado não pode mais ser considerado mero objeto, mas torna-se sujeito da relação processual e titular de posições jurídicas de vantagem, de direitos, faculdades e poderes, não meramente de obrigações, deveres e ônus.

Permanece complicado o liame entre direito penitenciário, de natureza administrativa, e processo de execução, de natureza jurisdicional. O conteúdo material da LEP, não raro, carece de eficácia, pois o pensamento anterior, administrativista, baseava-se na não-interferência do judiciário na administração, situação que marcou o abandono dos presos e a negligência para com o sistema penitenciário. “As tentativas de dirimir este problema palpitante levaram à reafirmação da jurisdicionalização em 1994, quando da implementação das Regras Mínimas para o Tratamento do Preso no Brasil[5]. Porém, de acordo com Salo de Carvalho, a execução penal continua sendo um espaço de vácuo jurídico em termos de validade e eficácia constitucional.

3. Os princípios relativos aos sistemas processuais e o diagnóstico do processo de execução penal brasileiro
De acordo com Salo de Carvalho, é impossível existir um sistema jurídico híbrido ou misto, seja processual, penal ou penalógico. Isso porque a característica dos sistemas, como a dos paradigmas e dos tipos ideais, é sua identificação a partir de alguns rígidos princípios unificadores. As tendências opostas não podem ser fundidas.
Isso embora no interior de um modelo normativo acusatório, possa-se visualizar práticas ou regras inquisitoriais, por exemplo. Essas, todavia, apenas maculam, não modificam a matriz original.
Conforme o autor, as garantias não são entes abstratos que se possam separar dos bens e valores garantidos; têm sempre conotação gradual, teleológica e instrumental, representadas pelos processo e pelos procedimentos dispostos no sistema, e utilizadas pelo operador para assegurar a máxima satisfação dos direitos.
Assim, a jurisdicionalização (formal) da execução penal representou um avanço, quanto às garantias, frente ao modelo administrativo. A simples jurisdicionalização, porém, não basta se não for modelada desde um mecanismo processual acusatório.
O processo de execução possui regras essencialmente inquisitórias, a começar por seu ato de inauguração. A iniciativa da ação inicia com a expedição de carta de guia por iniciativa do juiz, sem qualquer provocação da parte interessada (Ministério Público). Alguns autores afirmam, inclusive, que a oficialidade do órgão jurisdicional em iniciar o processo de execução permite negar sua autonomia, uma vez que, se há procedimento ex officio, não haveria nem novo pedido nem nova pretensão, não sendo instaurado novo processo. Desse modo, o processo de execução seria a última etapa, apenas, do processo cognitivo.
A mutabilidade das decisões, inclusive in pejus, é outro ponto que distancia o processo de execução da estrutura acusatória. No procedimento, porém, ressaltam as funções inquisitórias da execução penal.
De acordo com o art. 195 da LEP, a disponibilidade do procedimento judicial é de qualquer dos sujeitos da execução (juiz, condenado, defensor, MP, Conselho Penitenciário ou autoridade administrativa). Porém, a regra é a forma escrita – somente em casos excepcionais há audiência e oitiva das partes e, quando ocorre, não é obrigatória a presença do defensor. Essas características, como as possibilidades de iniciativa pelo juiz (ação e prova), viciam o direito de defesa e o livre convencimento, uma vez que a oralidade do procedimento é uma das principais garantias do contraditório e da publicidade dos atos.
Quanto à prova, segundo o art. 196, parágrafos 1º. e 2º., sendo desnecessária sua produção, o juiz decidirá de plano. A posição central do juiz, de acordo com Salo de Carvalho e outros autores (Franco Cordero, Schecaira), precisa ser reavaliada, bem como a necessidade de se garantir o mínimo dos direitos dos apenados através do devido processo legal, do contraditório, de se conferir de características acusatórias ao processo de execução penal, por enquanto, primordialmente inquisitório.
  





[1] CARVALHO, Salo de. Pena e Garantias. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2008. p. 163.
[2] CARVALHO, op. cit. p. 166.
[3] CARVALHO, op. cit. p. 168.
[4] CARVALHO, op. cit. p. 168.
[5] CARVALHO, op. cit. p. 169. 


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Surgimento da pena de prisão:


BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. 2ª. Ed. São Paulo: Saraiva, 2001.



“Para Melossi e Pavarini, a prisão surge quando se estabelecem as casas de correção holandesas e inglesas, cuja origem não se explica pela existência de um propósito mais ou menos humanitário e idealista, mas pela necessidade que existia de possuir um instrumento que permitisse não tanto a reforma ou reabilitação do delinqüente, mas a sua submissão ao regime dominante (capitalismo). Serviu também como meio de controle dos salários, permitindo, por outro lado, que mediante o efeito preventivo-geral da prisão se pudesse “convencer” os que não cometeram nenhum delito de que deviam aceitar a hegemonia da classe proprietária dos bens de produção.” (p. 23)


“Não só interessa que o recluso aprenda a disciplina de produção capitalista, que se submeta ao sistema, mas que faça uma introspecção da cosmovisão e da ideologia da classe dominante (bloco hegemônico). A eficácia, sob o ponto de vista da produtividade econômica, é um objetivo secundário, já que as condições de vida carcerária não o permitem: o objetivo prioritário é que o recluso aprenda a disciplina da produção.” (p. 24)

“Esse aprendizado inicia-se a partir do momento em que se pagam baixos salários aos que prestam serviços na casa de trabalho, já que, se o sistema é particularmente opressivo no método de trabalho, facilmente se poderá preparar o recluso para que se adapte e obedeça enquanto se encontre na prisão. Não interessa a reabilitação ou emenda; o que importa é que o delinqüente se submeta, que o sistema seja eficaz por meio de uma obediência irreflexiva”.(p. 24)

“Essa objeção aponta em direção a um aspecto importante: não se deve aplicar uma perspectiva unilateral ao buscar explicação para a origem e função da prisão. É necessário considerar outros tipos de motivação que, embora possam ser irracionais, também contribuem, em maior ou menor grau, para explicar as causas que levam ao surgimento de uma resposta penalógica como a prisão, que ainda se mantém vigente, apesar de estar em crise. A difusão da pena consistente na detenção do culpado e o modo de produção capitalista
contribuem de maneira determinante para a compreensão do fenômeno e destróem definitivamente os mito se os lugares-comuns da imutabilidade da prisão através dos séculos”. (p. 26)

“(...) resulta insuficiente a afirmação de que a prisão e seu afã de reforma são simples reflexos do modo de produção capitalista, já que sua função se circunscreve a impor a dominação econômica e ideológica da classe dominante. Também seria ingênuo pensar que a pena privativa de liberdade surgiu só porque a pena
de morte estava em crise ou porque se queria criar uma pena que se ajustasse melhor a um processo geral de humanização ou, ainda, que se pudesse conseguir a recuperação do criminoso. Esse tipo de análise incorreria no erro de ser excessivamente abstrato e partiria de uma perspectiva a-histórica.” (p. 27)


“É importante levar em consideração, quando se realiza uma análise da ideia ressocializadora, que a posição das idéias clássicas pressupõe a existência de um contrato entre cidadãos, e, com fundamento nesse acordo, justifica-se a existência da pena, sob a suposição de que é imposta a um ser livre que violou o pacto.” (p. 34)

“(...) todo comportamento ilegal produzido em uma sociedade – produto de um contrato social – é essencialmente patológico e irracional, o comportamento típico de pessoas que, por seus defeitos pessoais, não podem celebrar contratos. Essa é outra ideia que se encontra intimamente vinculada aos delineamentos reabilitadores da pena, visto que se chega a pensar que o delito é expressão de alguma patologia, o que justificaria, senão a imposição da pena, pelo menos procurar um meio ‘curativo’ ou reabilitador”. (p. 35)
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Crise da pena de prisão:


ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. 3ª. Ed. Rio de Janeiro: Revan,, 1998. Tradução de: Em busca de lãs penas perdidas; por Vania Romano Pedrosa e Amir Lopez da Conceição. ISBN: 85-7106-032-0.


“Na criminologia de nossos dias, tornou-se comum a descrição da operacionalidade real dos sistemas penais em termos que nada têm a ver com a forma pela qual os discursos jurídico- penais supõem que eles atuem. Em outros termos, a programação normativa baseia-se em uma “realidade” que não existe e o conjunto de órgãos que deveria levar a termo essa programação atua de forma completamente diferente”. (p. 12)

“A seletividade, a reprodução da violência, a criação de condições para maiores condutas lesivas, a corrupção institucionalizada, a concentração de poder, a verticalização social e a destruição das relações horizontais ou comunitárias não são características conjunturais, mas estruturais do exercício de poder de todos os sistemas penais”. (p. 15)

“A situação assinalada impede-nos de empregar a palavra ‘crise’ como ponto de inflexão do fenômeno de contradição entre o discurso jurídico-penal e a realidade operacional do sistema penal. Neste estudo, o sentido de ‘crise’ refere-se a uma brusca aceleração do descrédito do discurso jurídico-penal.” (p. 15)

“É necessário esclarecer que não acreditamos que a coerência interna do discurso jurídico- penal esgote-se em sua não-contradição ou complexidade lógica, mas, ao contrário, requer também uma fundamentação antropológica básica com a qual deve permanecer em relação de não-contradição, uma vez que, se o direito serve ao homem – e não ao contrário -, a planificação do exercício de poder do sistema penal deve pressupor esta antropologia filosófica básica ou ontologia regional do homem”. (p. 16-17)

“O nível “abstrato” do requisito de verdade social poderia chamar-se adequação de meio a fim, ao passo que o nível “concreto” poderia denominar-se adequação operativa mínima conforme planificação. O discurso jurídico-penal que não satisfaz estes dois níveis é socialmente falso, porque se desvirtua como planificação (dever ser) de um ser que ainda não é para converter-se em um ser que nunca será, ou seja, que engana, ilude ou alucina”. (p. 19)

“O sistema penal não atua de acordo com a legalidade. Da pluralidade semântica da expressão ‘legalidade’ pode-se extrair outro sentido: a operacionalidade real do sistema penal seria ‘legal’ se os órgãos que para ele convergem exercessem seu poder de acordo com a programação legislativa tal como a expressa o discurso jurídico-penal”. (p. 21)

“Ninguém compra um apartamento impressionado por uma bela maquete apresentada por uma empresa notoriamente insolvente; no entanto, compramos a suposta segurança que o sistema penal nos vende, que é a empresa de mais notória insolvência estrutural em nossa civilização.” (p. 27)

“A seletividade estrutural do sistema penal- que só pode exercer seu poder repressivo legal em um número insignificante das hipóteses de intervenção planificadas – é a mais elementar demonstração da falsidade da legalidade processual proclamada pelo discurso jurídico- penal. Os órgãos executivos têm ‘espaço legal’ para exercer poder repressivo sobre qualquer habitante, mas operam quando e contra quem decidem”. (p. 27)

“A crítica não conjuntural ao sistema penal é percebida, portanto, como uma ameaça aos direitos humanos no âmbito do órgão judicial e, diante disso, preocupados com necessidades mais urgentes, prefere-se ignorá-la, colocá-la entre parênteses, deixá-la em suspenso, atribuí-la a circunstâncias conjunturais ( o que é uma forma de negação) ou refugiar-se no contraditório argumento da ‘impotência-onipotência’ que outorga ao discurso jurídico-penal um mero valor instrumental”. (p. 30)




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